Há uma arrastar da realidade… como se estivesse dentro do Matrix… o olhar crava-se no relógio digital na plataforma da estação… 00h03… o olhar crava-se no relógio de pulso… 23h35… “foda-se!”… “nunca mais chego a casa”… a mão pede um cigarro... está em casa… não comprei mais…… arrasta-se a realidade e nem me apercebo da quantidade de gente que espera na plataforma a chegada de um comboio que os leve dali… para casa? Para outro planeta? Gente cansada, massacrada pela vida dura de assalariado, pela carga da crise e pela crise que é uma carga. Para onde deseja esta gente que os leve o comboio que só chegará dai a 30m… tempo morto! Não tenho tabaco e apetece-me tanto "aquele" cigarro das passas mais longas....
Esta gente… não a esperava na plataforma. Não por egoísmo… apenas porque não sabia que tanta gente procurava uma linha de partida a esta hora…que fará esta gente aqui a esta hora? De onde chegaram? Para onde vão?... e paro os passos nervosos, ansiosos de nicotina por um instante… semblantes estafados em redor… será o meu semblante assim…?
Penso que o dia correu… a semana… os meses… caminho para os 38… e o relógio de pulso para os 42, ainda falta muito para o comboio…
Sobra-me tempo pela primeira vez no dia. O tempo que eu não queria que sobrasse… o tempo que eu queria que fosse consumido já no comboio, em andamento e não ali, estático na plataforma… penso… será esta a condição do suburbano… o não urbano… o subúrbio… o condenado aos transportes incertos e não intermodais, sem interface… pessoas sem interface… que não conseguem ligar a vida privada à vida pessoal… será por só terem vida profissional… e a pessoal, a privada é gasta entre a falta de interface dos transportes?... na chegada do primeiro, o segundo já partiu… e na chegada do segundo o terceiro já lá não estará…
Gosto de viver ali… não o mudaria por nada… não me considero suburbano, nem aceito esse conceito… se ser suburbano é pejorativo… então ser urbano não o será também? O urbano vai ao subúrbio para encontrar a praia, o lazer, a diversão outdoor… a fuga! O suburbano vai à cidade para trabalhar e ganhar o seu soldo… qual é o pior status?.... Lá está, não me revejo no conceito… até porque sei que com a praia a 2 passos de distância, o meu suburbano será sempre muito melhor do que o urbano condenado ao cimento armado e às panelas de escape.
Mas ontem… naquela plataforma… aquele “00h03” cravado no relógio digital… acompanhado do 23h35 do relógio de pulso… simplesmente pesaram… o corpo pleno de inércia move-se a conta-gotas… e a gente que enche a plataforma… terei eu a cara que eles mostram… se calhar…
00h03… ali está o comboio… partida para o subúrbio… partiu… que bonita que é a urbanidade vista do tabuleiro da ponte… mas prefiro o subúrbio… sem as panelas de escape, com o cheiro a maresia, estacionamento, o Gil no alpendre…
Suburbano… talvez… mera referência geoposicional… mas eu… não… aqui deste lado a urbanidade mede-se em qualidade de vida e não é todos os dias que a urbanidade me obriga a aturar o seu cimento armado até tão tarde…
Aquele abraço... o clássico.
70s
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